A história da culinária afro-brasileira é inseparável da história da própria formação do Brasil. Do século XVI ao XIX, milhões de africanos foram trazidos à força durante o tráfico transatlântico — oriundos principalmente das regiões que hoje correspondem a Nigéria, Benim, Angola, Congo e Moçambique.
Com eles vieram técnicas, modos de preparo, temperos, rituais religiosos e a noção coletiva do alimento como partilha.
Nas cozinhas coloniais, majoritariamente comandadas por mulheres negras escravizadas, esses saberes foram incorporados ao cotidiano e moldaram o paladar brasileiro.
O uso do dendê, a combinação de tubérculos com proteínas, os caldos espessos, os cozidos longos, o feijão-fradinho, o quiabo, o amendoim e as pimentas africanas tornaram-se elementos essenciais da culinária brasileira.
Muitas dessas receitas também carregam simbologias ligadas aos orixás e aos cultos iorubás, fon e bantos, preservando memórias e resistências culturais.
A seguir, uma viagem pela história dos principais pratos afro-brasileiros, entendendo de onde vieram, como se transformaram no Brasil e onde prová-los na capital.
Sabores especiais
A culinária afro-brasileira é marcada por ingredientes que atravessaram o Atlântico e moldaram o sabor do país. No Infoviva abaixo, destacamos os principais elementos trazidos pelos povos africanos e que se tornaram essenciais em pratos tradicionais, rituais e receitas do nosso cotidiano.
Acarajé
O acarajé é um dos alimentos afro-brasileiros mais simbólicos, tanto pela culinária quanto pela religiosidade.
A origem está no akara, bolinho de feijão-fradinho preparado pelos povos iorubás, um dos maiores grupos étnicos da África Ocidental. O bolo era servido como oferenda a Xangô e Iansã, associados ao fogo, à energia, ao movimento — daí seu significado: akará (“bola de fogo”) + jé (“comer”).
Durante a diáspora, mulheres escravizadas passaram a produzir e vender o bolinho nas ruas brasileiras — as famosas baianas do acarajé. Eram as chamadas “escravas de ganho”, que entregavam parte do dinheiro aos senhores, mas preservavam a técnica ancestral.

O clássico “bola de fogo” | Foto: reprodução/Instagram
O uso do dendê, trazido pelos povos da África Ocidental, permaneceu como essência do prato.
No Brasil, o acarajé virou patrimônio cultural, símbolo da resistência das mulheres negras e guardião direto da herança iorubá.
Onde provar: Rota do Acarajé serve o acarajé tradicional com vatapá, caruru, camarão-seco e salada. Onde: R. Martim Francisco, 529/530 – Santa Cecília Instagram: @rotadoacaraje Horário: domingo a sexta, das 12h às 22h | sábado, das 12h às 23h
Bobó
O bobó nasceu na África Ocidental, onde ensopados espessos eram feitos com inhame-da-costa — tubérculo fundamental na culinária iorubá e entre povos do Golfo do Benim.
Com a chegada ao Brasil, a receita passou por uma das transformações mais emblemáticas da cozinha afro-brasileira: trocou-se o inhame pela mandioca, uma influência direta da cultura indígena.

Bobó: encontro ancestral entre África e povos indígenas | Foto: reprodução/Instagram
Essa fusão de técnicas africanas com ingredientes nativos gerou o bobó tal como o conhecemos hoje: denso, perfumado, quente, ligado à energia feminina e à fertilidade.
Onde provar: Tordesilhas Onde: Alameda Tietê, 489 - Jardins Instagram: @tordesilhas Horário: terça a sexta, das 19h às 23h30 | sábado, das 19h30 às 23h30 | domingo, das 12h às 17h
Caruru
O caruru é profundamente ligado ao culto aos Ibejis — divindades gêmeas da tradição iorubá, associadas às crianças e à proteção da infância.
Preparado com quiabo cortado finamente, camarão seco, gengibre e dendê, o prato simboliza fartura, união familiar e alegria.
No Brasil, ele se firmou no Recôncavo Baiano, especialmente nas festas de Cosme e Damião, onde é distribuído a crianças como gesto de bênção.

Caruru: prato celebra proteção e abundância | Foto: reprodução/Instagram
A textura viscosa, resultado natural do quiabo, é considerada sinal de prosperidade — e sua combinação de temperos é um dos grandes marcos da culinária afro-brasileira.
Onde provar: Ponto do Acarajé SP serve tradicional caruru em porção de 250 g. Onde: Av. Sapopemba, 4.830 – Vila Diva Instagram: @pontodoacarajesp Horário: aberto todos os dias, das 14h às 22h
Moqueca
Embora a moqueca atual seja vista como prato brasileiro, suas raízes dialogam intimamente com a culinária africana, sobretudo no uso do dendê, das pimentas e da combinação de peixe com tubérculos.
Em Angola e na costa ocidental, ensopados semelhantes são preparados com peixe, coco, quiabo, óleo de palma e longas horas de cozimento.

Moqueca: ensopado traduz o Brasil em cada colherada | Foto: reprodução/Instagram
No Espírito Santo, o prato ganhou caráter indígena, com urucum no lugar do dendê — enquanto na Bahia preservou-se o dendê como elemento espiritual e identitário.
A moqueca é, portanto, um prato “transatlântico”, síntese viva do encontro entre povos.
Onde provar: Consulado da Bahia oferece moqueca de camarão com arroz, pirão e farofa de dendê. Onde: Av. Pedroso de Morais, 853 – Pinheiros Instagram: @consuladodabahia Horário: terça a sábado, das 12h às 23h
Mungunzá
O mungunzá tem origem banto, especialmente dos povos de Angola e do Congo. A palavra vem do quimbundo mu’kunza, que significa “milho cozido”. Na África, preparações semelhantes são encontradas tanto doces quanto salgadas, com forte presença em celebrações agrícolas.
No Brasil, tornou-se conhecido como canjica no Sudeste, mas manteve seu nome original no Nordeste.

Mungunzá: receita angolana preservada no afeto das cozinhas brasileiras | Foto: reprodução/Instagram
Servido doce (com leite de coco e amendoim) ou salgado (como no Cabo Verde, onde se assemelha à chupada), o mungunzá é um dos pratos que mais preservam a matéria-prima africana: o milho como símbolo de força e resistência.
Onde provar: Mocotó Bar e Restaurante, tem no cardápio o mungunzá salgado. Onde: Av. Nossa Senhora do Loreto, 1100 – Vila Medeiros Instagram: @mocotorestaurante Horário: segunda a sábado, das 12h às 23h | domingo, das 12h às 17h
Vatapá
O vatapá chegou ao Brasil pelos povos iorubás e transformou-se em um dos pratos mais icônicos da culinária afro-brasileira.
Na África Ocidental, cremes espessos são preparados com farinha de arroz, pimenta africana, amendoim, camarão seco e leite de coco — ingredientes que atravessaram o Atlântico e foram recriados no Brasil.

Tradição africana recriada no Brasil com temperos e devoção | Foto: reprodução/Instagram
As variações brasileiras incorporaram gengibre, castanha-de-caju, pão, azeite de oliva e até frango, revelando adaptações regionais.
Na Bahia, o prato mantém ligação ritual com Oxum; no Norte, é presença obrigatória em festas populares.
Onde provar: Quintal Paraense, serve o vatapá com maniçoba, carinhosamente apelidado de vataçoba. Opção de trocar o arroz branco pelo arroz paraense ou arroz de pato. Onde: R. Horácio Vergueiro Rudge, 535 - Casa Verde Instagram: @quintalparaense Horário: quarta a sábado, das 12h às 22h | domingo, das 12h às 17h
Sabor da África na capital
A gastronomia africana contemporânea em São Paulo é marcada pela diáspora recente — sobretudo de camaronenses, congoleses, senegaleses e angolanos — que trouxeram seus pratos típicos e criaram pequenos polos culturais no centro da cidade, na zona Leste e em outros bairros.
O Viva a Cidade apresenta três casas que representam diferentes regiões do continente africano.
Biyouz
A chef Melanito Biyouha conduz uma cozinha vibrante, repleta de referências de Camarões e de países vizinhos.
O fufu — massa de farinha de arroz que substitui o papel do arroz brasileiro — acompanha ensopados encorpados com peixe, banana-da-terra frita, carnes e molhos ricos em especiarias. O famoso Ndolé, feito com folhas tradicionais, é prato afetivo da chef.

Biyouz: referências de Camarões e de países vizinhos | Foto: reprodução/Instagram
Máscaras e fotografias contam sua trajetória, inclusive quando cozinhou para a seleção camaronesa na Copa.
Onde: R. Barão de Limeira, 19 – República | R. Fernando de Albuquerque, 95 – Consolação Instagram: @biyouz_restaurante_afro Horário: diariamente, 12h às 22h
Congolinária
O chef Pitchou Luambo transformou receitas tradicionais do Congo em uma experiência vegana surpreendente.
As moquecas de banana-da-terra, ensopados com temperos congoleses e nhoque de shimeji mostram que a culinária africana vai muito além de carnes e peixes.
Aos domingos, rodízio no valor de R$ 39,90, com várias opções, 100% vegano e sem glúten.

Congolinária: experiência vegana | Foto: reprodução/Instagram
No espaço decorado com arte do artista Shambuyi Wetu, vídeos e música reforçam o clima africano contemporâneo.
Onde: Av. Afonso Bovero, 382 – Pompeia Instagram: @congolinaria Horário: terça a sábado, 12h às 15h e 19h às 22h; domingo, 12h às 17h
Mama África – La Bonne Bouffe
No Tatuapé, o chef Sam apresenta a culinária camaronesa com pratos de sabores profundos: peixe frito com banana-da-terra, cordeiro ao molho de especiarias, cuscuz típico e suco de hibisco com limão.

Mama Africa: chef Sam apresenta a culinária camaronesa | Foto: reprodução/Instagram
Ingredientes como egussi, ogbono, arroz vermelho e sementes tradicionais aparecem em ensopados autênticos.
A decoração com chita e máscaras reforça a atmosfera africana.
Onde: R. Cantagalo, 230 – Tatuapé Instagram: mamaafrica_labonnebouffe Horário: terça a sexta, 12h às 22h; sábado, 12h às 22h30; domingo, 12h às 16h










